Faz tempo que eu queria contar essa história, mas acabei esquecendo e só lembrei ontem por causa da memória de uma foto publicada nas redes sociais. Prometi que ia contar os detalhes um dia e vou aproveitar as minhas férias em isolamento social para fazer isso. Senta que lá vem história:
Em janeiro de 2018, eu viajei para a cidade de Bremen (Alemanha) para uma visita técnica na Universität Bremen, com a minha orientanda de doutorado, Dagmar. Fizemos uma viagem com algumas paradas, ficamos em Paris primeiro, voamos para Hamburgo e pegamos um ônibus até Bremen. Dag sempre foi uma excelente aluna e também é uma ótima companhia para viajar, sobretudo se você quer alternativas econômicas, como era o caso. Passeamos um pouco em Hamburgo e chegamos em Bremen no final da tarde, em um dia frio de janeiro (estava nevando quando chegamos em Hamburgo).
Dag organizou a viagem toda porque além de fluente em alemão, ela tinha morado em Bremen durante o doutorado sanduíche, então eu estava em uma situação inédita na minha vida de turista: só acompanhando e sem ter a menor ideia dos detalhes da viagem. Caminhamos bastante até o bairro onde estava localizado o hotel e chegamos em uma pitoresca avenida na beira do rio. Eu arrastava a minha mala (felizmente era uma mala pequena, daquelas de bagagem de mão) enquanto batia o queixo com frio. Andamos até o final da avenida e voltamos procurando o hotel e nada de encontrar o lugar. Percebi que Dag estava apreensiva porque aparentemente não existia hotel no endereço indicado. Naquele momento, eu pensei que tínhamos caído em algum golpe de acomodação barata, mas achei estranho porque Dag olhava na direção do rio enquanto procurava o hotel, enquanto eu olhava na outra direção, onde estavam os restaurantes, prédios e, é claro, hotéis. "Será que é aqui, Dag? Será que é aquele prédio no outro quarteirão? Está com cara de hotel"… Ela só balançava a cabeça negativamente até que me mandou esperar um instante no meio da rua. ˜Fique aqui que vou ali ver uma coisa!”. Tá, eu fico, onde eu iria com a noite chegando e naquela friagem? Comecei a ficar desanimada e ansiosa, pensando que nós teríamos que dormir ao relento ou procurar uma acomodação de última hora porque o hotel reservado não existia. Vi que ela entrou em um dos barcos que estavam ancorados na beira do rio e até aqui leitor, eu tinha certeza de que ela estava apenas buscando informações. Dag voltou e percebeu que eu já estava pálida, sucumbindo ao frio do norte da Alemanha. “Vamos entrar naquele bar para esquentar um pouco”, disse ela. Quando entramos no bar (que tinha uns 15 tipos de cerveja de todas as cores e atendentes tão jovens que pareciam adolescentes), ela conversou com o garçom que prontamente emprestou o telefone dele para que ela pudesse fazer uma ligação. Depois de algumas tentativas, ela conseguiu falar com alguém e ficou menos tensa e mais animada. Deduzi que ela tinha pedido asilo noturno para algum conhecido na cidade e eu estava sentindo tanto frio e cansaço que nem me importava em dormir na casa de um desconhecido. “Ana, já está tudo resolvido. Podemos ir!”. Naquele momento, eu não tinha mais forças nem para entender o que estava acontecendo. Sabe aquele pensamento de quanto menos você souber, melhor? Então... Voltamos para a rua e para a lufada de vento frio e caminhamos em direção ao… barco?!?
-“Dag, onde estamos indo, pelamordeDeus???”
Ela olhou para mim feliz da vida e respondeu: "-Para o hotel, ué!”
"- Hotel? Dag, isso é um barco e bem pequeno por sinal!”
Sim, o hotel era um barco e metade da minha mente estava apavorada porque imaginei que morreria de frio ali e a outra metade estava curiosa para saber o tamanho da roubada em que tínhamos nos metido. Atravessamos uma ponte estreita para entrar no barco e encontramos algumas pessoas conversando na saleta principal. Eram turistas como nós que estavam hospedados no barco. O dono do hotel-embarcação (que na verdade era um iate de 1930) chegou e nos mostrou a nossa cabine que ficava na parte de baixo do barco, com uma cozinha muito bem equipada. Entramos na cabine e, para a minha surpresa, estava bem quentinho lá dentro, as camas eram confortáveis e o banheiro limpíssimo. Arrumamos as nossas coisas enquanto eu pensava se o barco balançaria muito de noite, se havia o risco de afundar, se a porta estava bem trancada e se era seguro dormir ali. O hotel-barco tinha Wifi e contei para Robson sobre a nossa inusitada acomodação. Ele ficou assustado, provavelmente imaginando um barco de pesca pequeno ou sei lá o quê.
A noite foi tranquila, mas acordei com aquelas buzinas de navio que estremecem até o último fio de cabelo de qualquer ser vivo: o movimento das embarcações tinha começado de manhã cedo e como muitos barcos enormes transitavam por ali, o nosso iate de 1930 sacudiu com vontade! Acho que essa foi a última informação que passei para Robson e fomos tomar café rápido porque tínhamos uma série de compromissos importantes naquele dia. Antes de contar o resto da história, preciso registrar que depois que saímos do hotel-barco, eu estava sem conexão. Fomos tomar café, vistamos a orientadora de Dag em Bremen (que estava convalescendo de uma doença e nos recebeu gentilmente em sua casa), fomos para a universidade, participei de umas duas reuniões e de uma aula. O dia passou rápido e foi tudo muito tenso, era o meu primeiro dia ali em uma situação de trabalho formal, usando um idioma que nem é o meu e nem é o dos meus anfitriões, as palavras sumindo quando mais eu precisava delas ou que nunca pareciam adequadas o suficiente. Quase no final da tarde, Dag tinha conseguido se conectar na rede da Universidade com o seu login antigo e descobriu que Robson (marido de Ana Beatriz até aquele momento, não sabemos se continuará assim até o fim dessa história) tinha ficado histérico, achando que alguma coisa grave tinha acontecido conosco porque eu não mandei nenhuma mensagem durante todo o dia!!
Bom, se ele tivesse ficado preocupado e quieto, seria problema dele, mas nãooooooo. Ele entrou em contato com minha amiga e companheira de trabalho, Thelma Panerai, dizendo que tinha certeza que algo muito sério tinha acontecido comigo. Obviamente que ela, ao perceber o desespero dele, se desesperou também e, sem conseguir contato conosco, ligou para a sogra de Dag para que ela entrasse em contato com o filho que estava na França para acionar a Interpol, o MI 6, o BND, o Papa e sei lá mais quem! A nossa cara apatetada com a confusão que esse doido arrumou só não foi mais surpreendente do que o meu ataque de pelanca. De onde esse cosplay de elfo doméstico apavorado pode ter tirado a ideia de que eu estava em mortal dangerous? Meu último diálogo com ele antes de três dias de silêncio raivoso foi: - Você enlouqueceu? Ninguém pode estar mais seguro do que com Dag: ela tem 1,80m de altura, fez dezenas de cursos de defesa pessoal, sabe atirar, anda com spray de pimenta na bolsa e um canivete embutido e, se duvidar, foi dublê da Charlize Theron em Atômica! Por que diabos eu iria ficar em perigo em uma cidade pequena na Alemanha depois de viver uma vida inteira no Rio de Janeiro?!? Bom, depois disso tudo ainda passamos outras noites no barco, jantamos na casa de várias pessoas, conheci muita gente bacana e voltei encantada com os projetos do DIMEb da Universität Bremen. O casamento continua porque eu ainda demorei uns quinze dias para voltar para casa e deu para esquecer a raiva assassina, mas até hoje ainda tenho vontade de socar a fuça dele quando eu me lembro disso!
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